26 julho, 2011

Da série: puxando a brasa pra minha sardinha



A Chuva de Maria por Gerana Damulakis



Poesia é a expressão do belo por meio de palavras habilmente entretecidas.
Jorge Luis Borges

O que traz a reunião com os poemas de A chuva de Maria? Primeiramente, traz uma missão cumprida, revelada no ato de buscar palavras precisas e necessárias ao ofício de poeta. Isto valoriza a essência do ofício. Mas, não apenas isto. Consciente, então, do poder, mágico e bélico, da palavra, a poeta Martha Galrão expressa, por meio dela, a sua proposta poética e, ainda mais, a sua proposta existencial. A poesia é, portanto, um ser vivo (”confundo lábios e letras”), e há um constante paralelo com o feminino, pois a poesia é feminina no universo das palavras de Martha. E as palavras? Vale reparar no gênero das palavras escolhidas.

Palavras

Uma palavra lasciva: delícia,
uma palavra dengosa.

Duas palavras alegres: peteca e
manhã.

Uma palavra tensa:
tempo.

Uma palavra firme: chão.
Duas palavras tristes: dor e saudade.

Uma palavra livre:
beija-flor.



Seu espaço lírico é símbolo da vida: a água, tal como chuva – haja vista o título -, tal como rio, tal como lágrimas, a água está em imagens repetidas, tendo sua constância como sugestão, pois que levanta indagações ao longo dos poemas, revelando marcas que irão distinguindo a poeta.


A chuva de Maria

Tudo por fazer é água
que Maria acolhe
e carrega no cesto.
Chove, Maria
chora o leite derramado

lambe as letras
sorve o leite
pranteia seus amados,
Maria.


Mais emblemático ainda é o poema, cuja última estrofe suscita em mim uma vontade de largar a pose de avaliadora e gritar: “Lindo!”



Água
transforme minha dureza
em correnteza

Água
transforme minha queda
em cachoeira

Água
transforme meu medo
em corredeira

Água
me transforme em vapor
me alivie por inteira.



Assim, também escrevi “Lindo!” ao lado da seguinte estrofe: “ Faço cipó de letras/ e desço./ Teço corda de texto/ e retorno./ No despenhadeiro/ marcas de unha/ e memória”. No entanto, é o instante de continuar a leitura para além da beleza. Vamos seguir.
O ser e a dialética estão expostos, ou apenas pincelados, para que sejam evidentes as aparências mais calmas e mais descarregadas de seu teor de dramaticidade. Fica exposta de imediato a voz feminina: “Eu gosto mesmo é de usar vestidos/ e saias” (o vocábulo “mesmo” confere uma ênfase ao uso de vestidos e saias, quase como uma defesa, ou enfrentamento). Contudo, fica exposta na voz que se lê nas entrelinhas, um ser apaixonado e ciente do poder da linguagem e que mostra, para quem quiser entender, um comportamento feminista (na falta de um termo mais leve e menos carregado de significados que não são os que desejo no momento), quando traz da memória as “obrigações” da mulher, tais como “sentar de pernas fechadas”. O poema abaixo é emblemático:



Quando nasceu, o médico disse:
nasceu uma miss.
Com sorte, contrariou a profecia
mas nasceu mulher, isso se via.
E contra fatos há argumentos
'menina bonita da perna grossa
vestido curto papai não gosta'.

Foram muitos os ensinamentos
sentar de pernas fechadas
não ser muito justa a saia
não brincar de ousadia
fechar a porta, Maria,
que o boi já vinha.

A avó lhe pedia
em cartões cheios de anjos
pra ser sempre uma boa menina.

Nem sempre ela podia.



Em tempo algum Martha se desvincula de sua consciência feminina; na verdade, é uma consciência entranhada na sensibilidade, ao modo de uma Adélia Prado, e de um poder lírico que, se agudo por um lado, por outro traz retratos críticos, ao modo de Carlos Drummond de Andrade, acrescentados do requinte de uma Cecília Meireles.
De Adélia Prado (porque desde Gilka Machado não se lia poemas tão deliciosamente sensuais, já que Adélia praticamente reinaugura o lugar sensual dentro do poético), a carga sensual abertamente promovida por palavras diretas e fortes:


Fevereiro ferve
me dá febre
Me come feito homem.

Fevereiro arrepia
os bicos dos meus seios
Abocanha meus sonhos.

Fevereiro tem fome
não tem piedade
Me consome.

Fevereiro, me deixa.



De Drummond a ironia que pode ser apontada em vários exemplos, inclusive no poema supracitado que começa com os versos: Quando nasceu, o médico disse:
nasceu uma miss.
De Cecília, elegância ao criar uma atmosfera psicológica para decodificar os valores femininos (reparar na lista: “sentadas”, “plantadas” e “caladas”) do poema abaixo e na ludicidade requintada com a qual Martha conduz seus versos para o belo final.
O Peixe, as Mulheres, a Menina e a Flor

À beira da água do rio
eu vi três mulheres sentadas
três mulheres plantadas
três mulheres caladas
à beira da água do rio.

Beirando a água do rio
uma menina de cabelos cacheados
colheu uma flor amarela
para uma das mulheres belas.

À beira da água do rio
a menina deu a flor porque quis
seu nome é Beatriz.



Ouso perguntar quem seriam as três mulheres. Familiares, com certeza. Ou: “São amigas, são irmãs, são amantes, as três mulheres do sabonete Araxá?// São as três Marias?”, diria Manuel Bandeira se o intuito fosse a intertextualidade com a “Balada das três mulheres do sabonete de Araxá”, mas isso já é viagem do muito pensar em poesia.
A linhagem poética na qual Martha Galrão se inscreve é de primeiríssima água; porém, Martha escreve a sua poesia. Singular.
Por fim, resta comentar a série de monólogos (há a tentação de escrever diálogo, em lugar de monólogo, porque parece que a poeta está conversando com o leitor, usando sua voz narradora) se manifesta para contar. É uma voz íntima, ainda que audaciosa, contando e insinuando a formação de um perfil que se quer dito claramente no espaço poético.

Desamparo era a menina esperando com o coração na mão. Desamparo era a menina esperando com lágrima.
Triste e solitária, tão só, a menina só pensava e escrevia, a menina queria, como as outras crianças, esperar confiante. Mas, na espera, a menina sofria, com alma e estômago transtornados.
A menina olhava e tentava se convencer que alguém viria.



Martha estabelece um diálogo que se dá através da contensão, ou seja, do silêncio citado ou almejado, e, de seu oposto, da palavra buscada e achada.
Reflexo e projeção, portanto. Surgem daí o emocional e o existencial, ambos especulados a partir das possibilidades que cada palavra demonstra na criação (ou criatividade) poética.
Mais um tanto sobre a palavra, pois que ela domina a reunião de poemas: ao discorrer sobre a potencialidade da palavra – matéria-prima dos textos – os versos fazem ressoar a dialética da visão própria da poeta, igualmente fazem ressoar a magia da realidade que dá forma à perspectiva de vida de Martha.
Cada poeta faz seu caminho: construir poemas metalingüísticos, examinar o lugar de cada palavra, sua precisão, seu poder e sua dubiedade para, então, dizer poeticamente sobre a vida, este é o caminho de Martha. Caminho árduo o da poesia, caminho alcançado o de Martha Galrão.



Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas.
Clarice Lispector



PS: escrevi “Genial” ao lado do poema abaixo:
Do coração
à boca
o rastro
é curto.

Engulo palavra
Cuspo fogo
Engulo fogo
Palavra, eu cuspo.


4 comentários:

Santana Filho disse...

Um olho arguto e sensível para sua poesia, Martha. Parabéns pros dois.

M. disse...

Depois do texto de Gerana, fiquei ainda mais ansiosa por te ler, Martha. Bjs

Bípede Falante disse...

Ah, esse Gerana :) E ah, essa Martha! Duas que são muitas...
beijosss

Anônimo disse...

Depois dessa crítica de Gerana não há mais o que se escrever sobre sua poesia. E você duvidava dela!

A Chuva de Maria

A Chuva de Maria

Muadiê Maria

Muadiê Maria