23 fevereiro, 2010

Fragmento


"Lembranças.



“Evocando as lembranças da casa, adicionamos valores de sonho. Nunca somos verdadeiros historiadores; somos sempre um pouco poetas, e nossa emoção talvez não expresse mais que a poesia perdida.”
Gaston Bachelard


A primeira palavra que eu li foi CASA. No consultório da minha dentista, tia querida, irmã de minha mãe, vislumbrei na parafernália de instrumentos quatro botões e, acima deles alternavam-se as letras C e S. Do alto dos meus seis anos afirmei: se colocar um A aqui e outro ali fica casa. Pela reação entusiasmada de minha mãe e minha tia, não tive dúvidas: eu havia realizado uma grande proeza.
Hoje reflito e percebo que meu primeiro ato lembrado de leitura foi simultaneamente de escrita. Não à toa. “
Do ato de ler decorre o ato de escrever, de escrever a própria história e dos outros, de marcar a própria existência social com traços que podem, no entanto, guardar-se sob a forma das oralidades, tanto quanto ganhar volumes, cores, sinais.” (Eliana Yunes)
Desde que aprendi a ler e escrever, escolhi os volumes e cores, ler e escrever, escrever e ler, realizados por mim com a mesma emoção e importância.
Mas a memória é arteira, não é simples lembrança ou evocação, vem ornada de sentimentos, percepções, imagens, idéias agrupadas posteriormente, e nos intriga com seus misteriosos critérios de seleção e associações. Como aprendemos com a psicanálise, há na memória uma vertente inconsciente, e por isso, fora do nosso controle consciente. Assim como nos avisa um provérbio africano: “
o homem olha o mundo da porta da sua casa”
, só podemos ler o mundo através de nossas experiências e sentimentos. E se a lembrança é o que nos resta, havemos de arcar com ela. Por isso posso afirmar: mesmo que me falhe a memória, CASA foi a primeira palavra que li e escrevi.
Palavra cheia de significado e afeto, não qualquer uma, mas a minha casa, de onde leio o mundo, que até hoje ressignifico e reescrevo:


ai meu deus,
deixei o fungo tomar conta da goiabeira !
demorei demais.
a casa a nascer, nascente, crescente,
buganvília ainda nem deu flor,
primeiras flores da maria,
coqueiro pertinho do chão.
eu, com minha pressa,
acostumo com a beleza começar,
me planto,
encharco a grama,
arranco dandá com as mãos.


Não por mera coincidência, oficialmente fui alfabetizada pelo método A Casinha Feliz. Pelo que lembro, esse método relaciona as letras a símbolos do cotidiano e esses símbolos estão nas histórias criadas, supostamente para facilitar a a compreensão da criança. Acho que convivi bem com a confusão de apelidos e as defectivas dicas para escrita: ao lado da mamãe, como era chamada a letra m, deveria sempre ficar o papai (p) . Desconfiei dessa máxima e de tanta felicidade, pois a minha casa nem sempre era tão feliz, e papai e mamãe costumavam se desentender e ficar bem distante um do outro.
Da minha escola primária lembro-me com carinho de um livro de Érico Veríssimo muito colorido e com a capa dura, se não me engano se chamava Ana Maria no Castelo Encantado. Nos anos 80, Marisa Lajolo e Regina Zilberman ao escreverem a história da literatura infantil brasileira, já afirmavam que devido as suas características formais, em que, o visual e o verbal se mesclam, o livro para crianças constituía na verdade um novo objeto cultural. Confirmando a importância da ilustração no chamado livro infantil, desse livro não me lembro de história, mas das páginas azuis e dos cabelos loiros da menina. "

Martha

8 comentários:

Marcus Gusmão disse...

Este seu texto me alfabetiza.Com o método do poesia, do encantamento das lembranças.

Nilson disse...

Concordo com Marcus. E concordo com você: vamos escrevendo e (re) conhecendo.

Gerana Damulakis disse...

Depois do que Marcus disse, qualquer comentário dirá pouco. Concordo plenamente com ele.

Edu O. disse...

Marta, esse texto me fez retornar a infância, as minhas primeiras letras, a escola que foi tão importante na minha formação, aos livros que mainha dava de presente a cada conquista... a primeira frase que li em público (para mãe e pai) foi uma manchete de jornal: "Teimosia de Telê derrotou o Brasil". Minha mãe não acreditou no que viu e conta essa história até hoje, por isso repito aqui, porque minha memória não registrou. Lembro de um livro que falava sobre o dia e a noite. Portanto, DIA e NOITE são as primeiras palavras que lembro de ter lido.

Anônimo disse...

Dez, nota dez!

Janaina Amado disse...

Puxa, Martha, este textopoema está muito lindo, delicado, comovente, verdadeiro - e profundo. Adorei.

Anônimo disse...

LINDO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
PERFEITO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
MEMÓRIAS , HISTÓRIAS , VIVÊNCIAS RICAS DE SIGNIFICADOS E DE SIGNIFICÂNCIAS!!!!!!!!!!!!!!!!!!
ATÈ HOJE , TUDO QUE SEI , E O QUE SOU, APRENDI NA "CASINHA FELIZ"!!!!!!!!!!!!ESTRANHO!!!!!!!!!!!!!CASA, CACHORRO, PAPAI, MAMÃE ,VÔVÔ, VÓVÓ, IVO VIU A UVA.

Lapepe

. fina flor . disse...

ahhh, fiquei com inveja, agora, queria lembrar a primeira palavra que li, rs*

ó, peguei o livro essa semana! obrigada, flor, vou ler com carinho e depois te digo

beijocas

MM.

A Chuva de Maria

A Chuva de Maria

Muadiê Maria

Muadiê Maria