06 março, 2009

Meu pai

Viagem

O beijo da quilha
na boca da água
me vai trocando entre céu e mar,
o azul de outro azul,
enquanto
na funda transparência
sinto a vertigem
da minha própria origem
e nem sequer sei
que olhos são os meus
e em que água
se naufraga a minha alma

Se chorasse, agora,
o mar inteiro
me entraria pelos olhos.

Mia Couto

Muitas marés vão chegar, muitas marés passarão e eu continuarei chorando a morte de meu pai.
Porque meu pai me ensinou o mar.

Meu pai juntava as mãos em concha, levava a boca e assoviava o apito de um navio. Meu pai sabia o nome dos passarinhos, andava com guarda-chuva, pegava grauçá com as mãos, polvo em loca, pescava peixinhos em poças, colocava em baldes pra gente admirar e depois devolvia ao mar. Meu pai adorava fazer piscinas na areia, cavar buracos até a água minar. Na foto, sou eu pendurada em seu pescoço, na foto sou eu agarrada em seus cabelos pedindo ao tempo: não passe!





Meu pai gostava muito de viajar, de conversar e achava muitas coisas "uma beleeeza", enfatizando assim no "e" a alegria de viver. Meu pai dizia: "aquele abraço", e as minhas mãos parecem com as mãos de meu pai.



Com meu pai enfrentei altas ondas na Pituba, com meu pai me banhei no mar de Ondina, Piatã, Jauá. Com meu pai, Carimbamba, Morro de São Paulo, Candengo, Taquari, Pancada Grande, Ponta do Curral. Com meu pai, Guaibim, Guaibim, Guaibim. Com meu pai, o mar. Com meu pai comemorava nossos aniversários, o meu no dia 28 de março, e o dele no dia 31, pela primeira vez estarei sozinha em um mês de março.



Quando eu era criança meu pai me dava cebion e cortava qualquer mal pela raiz. Meu pai cantava "ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de meu amor" e eu chorava. Meu pai era um bom caminhador.



Meu pai gostava de São João, fogos, fogo, fogueira, em Guaibim, juntava coisas durante o dia para queimar. Emília dizia: Ramon é piromaníaco.



Meu pai era lindo, vaidoso e moreno. Meu pai é lindo e permanece em mim, em meu rosto, minhas mãos, meus pés, em meu sorriso de dentes miúdos, em meu medo de ter tétano e nessa mania de achar muitas coisas "uma beleeeza".

34 comentários:

Clóvis Campêlo disse...

O tempo é uma grande ilusão, a vida é uma grande ilusão, os nossos amores são ilusões vãs.
Tudo confabula contra o nosso desejo de permanência, de eternidade, de imobilismo edênico.
As nossas perdas só são compreendidas por nós mesmo.
Afinal, somos nós que inventamos a importância da vida e das suas relações.
Viver é alimentar a fera da solidão.

Verônica Aroucha disse...

Martha qurida, que bela homenagem!
Bela? Tão pouco para mãos idênticas, dentes pequenos, peixinhos e fogos de São joão; tudo será minguado, faltoso. Até as ondas não flutuam mais - resta o coração onde o amor vingou.
É uma planta eterna, imensa!
bjs.
Verônica, com saudades também de papai.

José Calvino disse...

Como a compreendemos, Marthinha.
Seu pai era uma criatura maravilhosa, essas suas recordações que te impressionou: o amor, à influência que tivera na educação, as que se podem considerar como a infância que lembra-se do pai, trazem à memória:
"Uma beleeeza".
Ele deixou com você. Tenho certeza que você dará continuidade, e nós diremos: "Que beleeeza"!
Beijos, poetamiga!
José Calvino

Janaina Amado disse...

Martha Muadiê, cheguei aqui pra lhe dar um recado sobre minha mãe, encontrei seu poema e seu texto (poematexto) sobre seu pai, e estou emocionada. Bom demais saber reconhecer na gente o que vem dos nossos pais e mães, não é? Nesses últimos tempos, ao fazer a revisão da obra de minha mãe, tenho pensado muito sobre o reconhecimento e a aceitação de heranças. A gente pode receber uma herança, mas não a aceitar, não é mesmo? Martha Muadiê: você aceitou sua herança, seu pai, portanto, estará sempre com você. Ele faz aniversário no mesmo dia do meu pai, sabia?
Ué, então vc. não sabia que Jacinta Passos é minha mãe? Tenho escrito um pouco sobre isso no blog, no início de forma velada. Veja aqui:
http://acreditandonotruque.blogspot.com/2009/02/cancao-do-amor-livre.html
Vc. conhece os poemas de Jacinta? Estou fazendo tudo para a que a obra completa dela, poesia e prosa (mais fortuna crítica e biografia) seja publicada ainda este ano, está tudo encaminhado. Me ajude com a torcida.

Anônimo disse...

Oi Martinha!
Adorei a homenagem a Sr. Ramon. Lembrei dos sábados e domingos que íamos para a praia de Ondina e ele nos ensinava a pescar, lembra? Eu e Lito gostávamos mais da pescaria. E quando ele nos tirava da piscina de pedras pq estava na hora de ir e ninguém arredava pé???rsrsrs
Tempo bom, lelê...não volta mais... Mas está guardado em nós!!!
Te amo!
Bjo grande

Guardado em nós e para sempre!!!

Anônimo disse...

Leio e choro

Acho que isto diz da beleeeza
do mar
e de amar

Beijo

Anônimo disse...

Leio e choro

Acho que isto diz da beleeeza
do mar
e de amar

Beijo

líria porto disse...

chorei pouco a morte de meu pai - ele não gostava que eu chorasse - e ao ler o que escreves percebo o mar imenso, retido dentro de mim!

besos e obrigada pelo presente!

LIRIS LETIERES disse...

Uma BELEEEEEZA!!!
Reparou que na camisa amarela do "piromaníaco" tem dizendo que ele é HOT?
Te amo.

aeronauta disse...

Texto escrito à flor da pele, visceral, maravilhosamente humano. Comovente, e muito, muito bonito.

MARIAESCREVINHADORA disse...

No dia de seu aniversário, Marthinha, ele estará com você. Pai nunca abandona seus filhos, acredite.
Lindas recordações, adorei.
Aguardarei mais, é bom recordar.
Beijos,

Conceição

Marcus Gusmão disse...

Maria Martha você me fez chorar.

pomba disse...

Pois este vai ser o 31o mês de março sem meu pai. E acho que é o primeiro ano em que paro verdadeiramente para pensar no significado disto tudo. Talvez porque no próximo dia 14 meu pai faria 100 anos...
Linda a homenagem que vc fez!

Georgio Rios disse...

Sei que é ousadia da minha parte falar de algo tão particular quanto a ausencia/presença de alguem em tua vida que é teu Pai. Mais segue um inédito que diz mais ou menos o que ví de lindo no que tu esvreveste sobre ele.


PAI

Estava na porta
abrindo os olhos
em silêncio,
e certa luz
se fez aqui

uma presença
uma intima
presença de anjo

asas de sonora suavidade
me rodearam
e ví alí
um ser que em mim
é ser/completo...

Espero que goste.

GEorgio RIos

Unknown disse...

Martha,
morte saudade.
Chorei, chorei. Choro.
Beijos de maria

Giselly Lima disse...

Marta,em março, meu pai se foi e o seu veio. Fiquei muito tocada com seu belo texto, lindo jeito de tê-lo por perto
Desejo a você um março feliz.

Laura_Diz disse...

oh! que pai bom vc teve e que lindo o que escreveu.
Ele não estará ao vivo,mas sim em vc.
Pois é, este março será o primeiro sem o meu amor, um amor de quase 30 anos.
Chorei mto estes dias,depois resolvi olhar suas fotos, sua beleza e me acalmei.
Bjs querida, Elianne-Laura

Laura_Diz disse...

Querida não é o estilo do seu blog, mas vc pode divulgar, se quiser:
Esta semana se comemora o Dia Internacional da Mulher, dia 8 de Março.

Que tal se todos nós fizéssemos uma referênca em apoio à menina- mãe, que acaba de abortar e sofrer ataque da Igreja? OK. a excomungada foi a mãe, os médicos que a socorreram, ela é 'de menor' como disse o arcebispo.


Acho que ela precisa saber que nós a apoiamos, se a Igreja excomunga, nós protegemos.

Abraços,
Laura

Leia aqui:

http://lauravive.blogspot.com/2009/03/revoltante.html

Ana Cecília disse...

Belíssimo, Martha! seu texto me comoveu e me fez chorar. Também tenho um pai assim, imenso. Também faço aniversário na mesma semana que meu pai.
Acho que eles ficam/ficarão pra sempre encantados perto da gente.
grande beijo!

Anônimo disse...

Poxa, Martha, que bonita homenagem! Ao seu pai e ao seu sentimento. Um canto de lua minguante, que nunca perde a luz cheia. Me pegou de jeito.

Senhorita B. disse...

Texto lindo, dolorido, humano, muito humano. Fiquei super emocionada.
Amiga, não tenho o seu e-mail para mandar o convite virtual do Vestígios.
Beijos,
Renata

RAINHA MAB disse...

Eu não gosto de vir aqui. Toda vez que venho eu choro, e, sabe, tenho ficado muito feia quando choro. Nem um corretivo de olheiras incrível que ganhei, importado, deve ter sido os olhos da cara, nem ele dá jeito em minha pessoa quando eu choro.

Se você soubesse que meu pai, meu trovador, meu parceiro, meu grande amor, se foi há vinte e um anos e TODOS OS DIAS eu lembro dele tão vivamente que às vezes penso que é tudo mentira e que vou acordar daqui a pouco e o verei roubando comida da geladeira.

Nunca vai passar, sabia? Não sei se fico triste ou feliz por lhe dizer isso.

Anônimo disse...

Martha, você deve imaginar como eu estou depois de ter lido o seu texto. Emocionada, sem palavras, sem fólego. Beijos, querida, no coração. M.

Anônimo disse...

Seu pai permanece em voce. beijos

KImdaMagna disse...

... a imortalidade
é o sopro nos lábios
da criança...
...seus filhos...
...a vida...

Xaxuaxo

Eliana Mara Chiossi disse...

Maria,

comovente teu texto.
E ao ler, dá vontade de ter conhecido seu pai, de ter sido amiga.
Você desenha um amor tão bonito.
Ficar com essa lembrança, com esses quadros na memória, é uma forma de te alimentar, para ser melhor mãe.
Fique bem!

Salve Jorge disse...

Pai
Da gente não sai
Mesmo quando tudo se esvai
Ele fica
Naquela dica
Aquela lembrança que pinica
Numa prosa tão rica
Mesmo se o tempo nos trai
A gente não cai
Faz é voar
Na sorte dessa herança...

. fina flor . disse...

ô, meu anjo, fiquei emocionada.

nem imagino como seria viver sem meu pai, por isso, nem arrisco dizer que ele estará sempre junto de ti porque está em seu coração.

beijos, flor

MM.

Anônimo disse...

Teu coração é muito bonito. Cabem esses sentimentos intensos que vão além das palavras. Emocionado, agradeço a seu pai por você.

Fred Matos disse...

Comovente, Martha.
Lembrei-me do meu pai, da minha mãe, que também já partiram.
É isso.
Beijos

Edu O. disse...

Que linda homenagem!

Aroeira disse...

nossa, me emocionei com você e seu pai. belo!

Leonor disse...

Que bonito, Martha. Um beijo grande

Raiça disse...

Eu não tinha lido isso antes.

Li agora, chorando, de beleza e tempo...

A Chuva de Maria

A Chuva de Maria

Muadiê Maria

Muadiê Maria