23 fevereiro, 2012

BASTOU QUE O TELEFONE TOCASSE

Passei meses sem ser mais poeta.
Passei meses sendo qualquer coisa
Entre a certeza e a vida, que são coisas
Que evitam a poesia e não exigem rima.

Mas bastou que o telefone tocasse,
Que a voz do outro lado dissesse
“Se prepare, você precisa ser forte”,
Para que eu soubesse o que sempre soube:
Que o que acontece já aconteceu.

De fato, minha mãe já havia morrido,
E eu já fora seu filho, em todo o sempre
Que só agora a física explica
E a poesia sempre susteve.

O futuro é, o passado será e o presente foi.
Tudo já aconteceu e ainda acontece e acontecerá.

Minha mãe, portanto, está nascendo, neste momento,
E também está sonhando, seu rosto lindo e adolescente,
Com seu amado, de quem nascerei em breve.

E é inevitável que eu pense, como Wislawa Szymborska,
Que, tão logo começa a ser pronunciada,
A palavra futuro torna-se passado.

Tão logo se morre, começa-se a nascer, por analogia.

E, assim, em algum lugar minha mãe está à minha espera.
E, assim, em algum momento eu saio de suas entranhas.
Noutro, meu pai me faz,
E seus olhos e os dela são os mais felizes.
Noutro ― ainda mais puro ―, ela me acaricia,
Me põe para dormir,
Me faz tomar o remédio, o banho, e comer e rir
E pronunciar as primeiras sílabas.

Noutro ainda, e não mais importante,
Ela me ensina a ler, a escrever,
A combinar as palavras.
Estas, com sua falta, sua imensa presença ― incorpórea.

Muitas pessoas confundem humor e sarcasmo com ironia.
Ironia é isto:
Em setembro, levei minha mãe ao aeroporto,
Para passar um mês em São Paulo com meu irmão.
Em novembro, fui buscá-la, no mesmo aeroporto,
E ela estava dentro de um caixão.
Mas nem mesmo isto é novo nem será,
Pois já aconteceu, está acontecendo e acontecerá.

Tatibitateio minhas primeiras sílabas num futuro passado,
E meu pai e minha mãe riem.
Acabaram de se conhecer, de se amar,
E já me viram nascer
E já se separaram
E já de volta de novo, olhos nos olhos,
Lábios que se tocam.

Costuma-se chamar tempo ao correr dos dias.
Mas tempo é palavra imprecisa.
Chamemos a tudo vida ― o antes, o depois e o agora.
E fiquemos à espera, no entrepalavras,
Do que nos reserva a sintaxe da História.

Mayrant Gallo

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